Escavações no Ceará encontram urnas funerárias indígenas com dentes e ossos no Maciço de Baturité

Foto: Reprodução.

 

Depois de perder parte do material de pesquisa no incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o arqueólogo cearense Vinicius Franco voltou a estudar, no doutorado realizado na instituição fluminense, os artefatos encontrados no território do quilombo Serra do Evaristo, em Baturité, Ceará. Ele e a professora Andrea Lessa coordenam a segunda escavação no Maciço, que busca entender “de forma mais efetiva” o sítio arqueológico.

Até agora, já foram resgatadas cerca de dez urnas, entre utensílios íntegros e fragmentados, e em duas delas já foi possível identificar dentes e partes de ossos humanos. Pelas condições dos materiais encontrados na primeira urna funerária, ainda não se sabe se será possível identificar informações como sexo e idade. A segunda foi resgatada no último sábado (5).

“Não sei se a gente consegue extrair alguma coisa para datar, e isso só o laboratório vai dizer. Eu estou torcendo para que sim, e vamos mandar para análise nos Estados Unidos. Se não for possível, espero encontrarmos outros (materiais)”, explica Vinícius.

Segundo o arqueólogo, só será possível atestar que as demais vasilhas possuem ossos após análise em laboratório, que será realizada no Instituto Tembetá, Instituição de Guarda e Pesquisa (IGP) autorizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e localizada em Fortaleza.

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As escavações tiveram início em março de 2025 e devem seguir, pelo menos, até agosto. Vinícius detalha que ainda é necessário fazer recoleta de materiais existentes na superfície — como cerâmicas dispersas no perímetro de uso da comunidade — e escavações de vasilhas enterradas, além de levantamentos topográficos e outras atividades.

“Tem vasilhas que ainda estão dentro de casa de pessoas, precisamos pedir autorização do proprietário”, exemplifica. A pesquisa conta com apoio financeiro do Museu Nacional, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da National Geographic.

 

Equipe trabalhando na escavação
A comunidade do quilombo Serra do Evaristo teve protagonismo durante o processo da primeira escavação e essa participação continua na nova pesquisa / Foto: Reprodução.

Em busca de novas informações

Fragmentos de cerâmica, urnas funerárias, vasilhas utilitárias e lâminas machado polidas, além de esqueleto humano, foram encontrados na região durante a primeira escavação, em 2012. Tudo isso estava no quilombo Serra do Evaristo, emergindo da terra e aparecendo no campo de futebol, na estrada, nos jardins. Após a primeira coleta, em uma escavação “emergencial”, novos objetos continuaram surgindo.

“Vestígios diversos continuam aflorando no território por conta da erosão do solo provocada pela água da chuva. Por ser um sítio a céu aberto, com pouca cobertura vegetal, essa erosão é bem mais forte”, explica Evandro Ferreira, professor, liderança comunitária e membro da Associação Comunitária da Serra do Evaristo.

Nesta segunda escavação “mais controlada”, a equipe quer tentar inferir o tamanho do sítio arqueológico, além de entender melhor para que ele era utilizado. “Era um local só para enterrar as pessoas? Ou eles viviam e enterravam conjuntamente?”, questiona.

 

Urna escavada em território do quilombo Serra do Evaristo
Urna funerária íntegra foi encontrada pelos pesquisadores no último sábado (5) / Foto: Reprodução/Vinicius Franco.

 

Com essa escavação, os pesquisadores querem entender como ocorreu a ocupação na Serra do Evaristo e buscam mais dados cronológicos que permitam conhecer a idade deste sítio. “Na época (da primeira escavação), foi datado o carvão, e eu quero datar o osso para termos uma datação direta, e não relativa”, explica.

No local, já foram encontrados desde elementos que se estima terem 550 anos antes do presente (before present, em inglês, que se refere a aproximadamente aos anos 1400, século XV) a louças inglesas, do século XIX.

“Imaginamos que seja um sítio de longa duração e com grande densidade demográfica, tendo em vista o período de pré e pós contato (com os colonizadores). Esses grupos que ficavam mais distantes do litoral, parcialmente, se preservaram mais, mas também sofreram com o impacto da colonização”, explica o arqueólogo.

 

Pacote com três dentes inteiros encontrados em urna funerária indígena, no território do quilombo Serra do Evaristo, em Baturité
No último sábado, 5 de julho, os pesquisadores encontraram três dentes inteiros / Foto: Reprodução/Vinicius Franco.

 

Contribuição para a Arqueologia

A primeira escavação arqueológica na Serra do Evaristo ocorreu em 2012, com financiamento do Iphan, por meio da Superintendência no Ceará, e achou diversos fragmentos de cerâmica, urnas funerárias, vasilhas utilitárias e centenas de lâminas de machado polidas.

Com isso, foi criado o Museu Comunitário da Serra do Evaristo, a partir da necessidade de abrigar a coleção de vestígios arqueológicos retirados na primeira escavação. Evandro Ferreira, gestor do equipamento, destaca a relevância do museu para dar visibilidade para a comunidade. Como exemplo, ele cita que instituições de ensino, públicas e privadas, do Maciço de Baturité, de outros locais do Ceará e de outras regiões passaram a visitar o local.

 

Andrea Lessa e Vinicius Franco próximo a um ponto de escavação
Andrea Lessa e Vinicius Franco são antropólogos do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) / Foto: Reprodução.

 

“Os vestígios encontrados são muito importantes para a história local da comunidade, para a história do município de Baturité, do Ceará e do Brasil. Da primeira escavação, a datação desses vestígios dá conta de que, naquele território, já havia ocupações humanas bem antes de os portugueses chegarem”, destaca.

Segundo Vinícius Franco, esse sítio arqueológico também pode indicar a presença da Tradição Aratu, identificada pelo arqueólogo Valentin Calderón na Bahia, na década de 1970. Hoje se sabe que os sítios arqueológicos da Tradição Aratu foram encontrados em diversos estados do País, como Goiás, Tocantins, São Paulo e Piauí, entre outros.

Caso seja confirmada a presença na Serra do Evaristo, a pesquisa pode contribuir para a compreensão sobre a dispersão dos povos de Tradição Aratu e, com isso, da ocupação do território que hoje chamamos de Brasil.

Isso também vai nos remeter a tentar preencher essas lacunas, tentar montar esse quebra-cabeça da ocupação no Brasil. Nós temos a Serra da Capivara (no Piauí), com datações de 50 mil anos, mas você tem que criar um contexto no entorno de ocupações também antigas que dão suporte a essas teorias mais abrangentes. Então, conseguimos, através deste sítio, complementar e contribuir com esse quadro na ocupação do território.

Participação da comunidade

Para realizarem a pesquisa atual, os antropólogos contam com apoio de profissionais de outras áreas, como Geologia, História e Biologia. Além disso, a comunidade do quilombo Serra do Evaristo teve protagonismo durante todo o processo da primeira escavação e essa participação continua na nova pesquisa.

A associação de moradores selecionou seis jovens com ensino médio para auxiliar nas escavações e receber capacitação e bolsa de estudos. O grupo também solicitou que fossem realizadas outras atividades educativas junto à população, como ações de divulgação do conhecimento sobre a arqueologia cearense.

Evandro Ferreira, professor, liderança comunitária e membro da Associação Comunitária da Serra do Evaristo, destaca esse protagonismo e a importância da participação de jovens do território. “Essa participação da juventude, de pessoas da própria comunidade, tem sido muito importante. Elas contribuem diretamente no processo de visita guiada e até de identificação de vestígios que vão se aflorando no sítio”, afirma.

O apoio da comunidade do quilombo é considerado fundamental para a pesquisa. “Dos meninos que participaram na primeira escavação, 90% entraram na universidade, se formaram e hoje trabalham com História, Geografia, são professores ou pedagogos”, complementa o arqueólogo.

 

 

*Diário do Nordeste