PMs entravam em comunidade de Fortaleza apenas para receber propina, diz investigação

A investigação contra o esquema criminoso resultou na denúncia do Ministério Público do Ceará (MPCE) contra 16 PMs, que foram presos em julho deste ano 

 

Foto mostra material apreendido com policiais militares investigados por corrupção e extorsão em Fortaleza. Há armas de fogo e munições em cima de uma mesa.
Legenda: Armas de fogo e munições foram apreendidos com policiais militares, alvos da Operação Kleptonomos, deflagrada em 29 de julho deste ano - Foto: Divulgação/ MPCE.

 

Composições da Polícia Militar do Ceará (PMCE) entravam na Comunidade do Pôr do Sol, na Grande Messejana, em Fortaleza, apenas para receber propina, e não realizavam o patrulhamento esperado. Isso é o que aponta a investigação contra o esquema criminoso que resultou na denúncia do Ministério Público do Ceará (MPCE) contra 16 PMs, que atuavam na região e foram presos em julho deste ano.

"O percurso realizado pela VTR (viatura) é bastante rápido, os militares dão uma volta na comunidade até receberem a 'cota', ocasião em que permanecem dentro do veículo e ficam pouco tempo na redondeza, aproximadamente 10 minutos. Após receberem o valor, a viatura deixa o local sem ter realizado seu trabalho de patrulhamento na área para a qual estava escalada", descreveu o MPCE, na denúncia.

Um dos fatos relatados pelo MPCE na denúncia aconteceu no dia 22 de abril de 2023. Escutas colocadas pela Coordenadoria de Inteligência (Coin) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), na viatura utilizada pela composição policial formada pelo sargento Raimundo Gleison Ferreira Barbosa, o cabo Alisson Pinto Silva e o soldado Alexsandro Barbosa Matias, captaram o trio falando que tinha que entrar em uma rua da Comunidade, às 20h14.

"Por meio das imagens captadas, é possível visualizar a VTR em deslocamento por volta das 20:15:38, e, por volta das 20:16:45, percebe-se que a VTR entra em uma rua mais estreita, e é nesse momento que é possível ouvir um dos policiais dizendo: 'Bora meu fi, quero sair fora daqui'", narrou o Ministério Público.

No minuto seguinte, às 20h17, "é possível ver um rapaz, vestindo uma bermuda escura, se aproximando da VTR ao lado do passageiro, momento em que o passageiro se desloca para próximo do vidro e é ouvida a seguinte frase: 'Bora meu fi, agilidade'. Nesse momento, é bastante provável que o indivíduo tenha jogado o pagamento da 'cota' para dentro da viatura".

"Logo em seguida, às 20:17:26, o policial que estava no banco do passageiro faz um comentário: 'susto que eu tomei foi naquele dia que não vi ninguém, doido. O doido escondido atrás da porta, só vi o negócio caindo'; o que confirma o modus operandi desse grupo", concluiu o Ministério Público.

Várias voltas até receber a 'cota'

O modus operandi se repetiu uma semana depois, no dia 29 de abril. A composição policial era formada pelos mesmos três PMs, com o acréscimo do cabo José Dantes Barbosa Braga.

Os PMs teriam chegado pela região às 10h41, questionado a uma pessoa se "vai dar certo?" e saído. Às 10h52, os militares voltam ao local, e um deles diz "está vindo sem nada na mão". Seis minutos depois, uma nova abordagem, e um suspeito pede mais um tempo.

Segundo o MPCE, "às 11:00:50, a viatura passa e é possível ver o policial que está no passageiro se deslocando um pouco mais para perto do motorista, e falando: 'desenrola aí, meu peixe'?! E depois: 'atividade, atividade, cuida! Conseguir o dinheiro'. Depois desse fato, eles saem da região".

Mais uma vez, constata-se que os agentes de segurança pública, em serviço e utilizando viaturas da PMCE, aceitam propina ao entrarem em comunidades. O percurso realizado é bastante rápido, os policiais dão uma volta na comunidade até receberem a 'cota' e, no caso em questão, passam mais de uma vez até receberem o valor."

Os policiais militares "permanecem dentro do veículo e ficam pouco tempo nas redondezas. E, novamente, após receberem o valor, a viatura deixa o local sem ter realizado seu trabalho de patrulhamento na área para a qual estava designada", acrescentou o Órgão.

Como funcionava o esquema criminoso

O pagamento de propina e o cometimento de outros crimes, pela organização criminosa, aconteceram entre o fim de 2022 e o dia da Operação Kleptonomos, deflagrada pelo Ministério Público do Ceará em 29 de julho deste ano. 16 PMs foram presos e afastados das funções.

R$ 300 mil

pode ter sido o faturamento da organização criminosa, segundo um balanço parcial, divulgado pelo coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), o promotor de justiça Adriano Saraiva, no dia da deflagração da Operação.

O MPCE denunciou os 16 policiais militares pelos crimes de integrar organização criminosa, colaborar em grupo para o tráfico de drogas e corrupção passiva. A denúncia foi recebida pela Vara da Auditoria Militar do Ceará e os agentes de segurança viraram réus, no último dia 2 de julho.

Veja a lista de PMs presos e denunciados:

  • Airton Uchoa de Sousa Pereira (soldado PM);
  • Alexsandro Barbosa Matias (soldado PM);
  • Alisson Pinto Silva (cabo PM);
  • Dalite Paulo Maia Pinheiro (soldado PM);
  • Danyvan Robert Souza da Silva (cabo PM);
  • Flauber Pereira Assunção (sargento PM);
  • Israel Rodrigues Costa (soldado PM);
  • José Dantes Barbosa Braga (cabo PM);
  • José Narcellyo do Nascimento Santana (subtenente PM);
  • Luan Alberto da Silva Lopes (soldado PM);
  • Marcondes de Oliveira Braga (sargento PM);
  • Márcio Xavier Moreno (sargento PM);
  • Raimundo Gleison Ferreira Barbosa (sargento PM);
  • Roberto Montenegro da Cunha Neto (cabo PM);
  • Tiago Daniel Martins Costa (cabo PM);
  • Thiago Monteiro da Costa (soldado PM).

Os investigadores descobriram que os policiais militares protegiam criminosos em troca de propina, além de extorquir traficantes rivais. O grupo de PMs atuava principalmente na comunidade do Pôr do Sol, no Coaçu e na Paupina - que ficam na Grande Messejana, em Fortaleza. A região é dominada pela facção carioca Comando Vermelho (CV).

Os policiais militares cometiam os crimes durante o serviço policial, enquanto utilizavam fardas e viaturas da Polícia Militar, diz o MPCE. "Todos se utilizam das ameaças de execução dos serviços próprios do estado, no qual a ostensividade é intrínseca à Polícia Militar, para intimidar e prejudicar o tráfico, afirmando que ficarão no local trabalhando e impedindo a venda de droga caso não recebam os valores solicitados", apontou o Ministério Público.

A defesa de cinco policiais militares denunciados e presos, representada pelos advogados Manuel Micias Bezerra, Francisco José Sabino Sá e Filipe D'Ávila, destaca que, "após ter acesso aos autos da investigação, constatou-se que o procedimento investigativo ocorreu no período de novembro de 2022 a novembro de 2023, quando teriam ocorrido os supostos fatos atribuídos aos policiais".

Causa estranheza à defesa o fato de que, ao longo de toda a investigação conduzida sob sigilo absoluto, nenhum dos policiais foi ouvido ou intimado a prestar esclarecimentos, sendo-lhes negada, desde o início, a oportunidade de apresentarem qualquer defesa ou versão dos fatos. A investigação, portanto, seguiu de forma unilateral, sem garantir ao contraditório nem a ampla defesa em fase pré-processual."

Segundo os advogados, "as prisões preventivas ora executadas, mais de dois anos após os supostos acontecimentos, revelam-se absolutamente extemporâneas, sem amparo em fatos atuais que justifiquem a medida extrema (ultima ratio), principalmente diante da primariedade dos acusados, do exercício regular de suas funções públicas, da existência de domicílio fixo e da ausência de riscos relevantes no momento em que a medida é imposta, uma vez que a prisão preventiva exige contemporaneidade dos fatos"

 

 

*Diário do Nordeste