Composições da Polícia Militar do Ceará (PMCE) entravam na Comunidade do Pôr do Sol, na Grande Messejana, em Fortaleza, apenas para receber propina,
e não realizavam o patrulhamento esperado. Isso é o que aponta a
investigação contra o esquema criminoso que resultou na denúncia do
Ministério Público do Ceará (MPCE) contra 16 PMs, que atuavam na região e foram presos em julho deste ano.
"O percurso realizado pela VTR (viatura) é bastante rápido, os militares dão uma volta na comunidade até receberem a 'cota',
ocasião em que permanecem dentro do veículo e ficam pouco tempo na
redondeza, aproximadamente 10 minutos. Após receberem o valor, a viatura
deixa o local sem ter realizado seu trabalho de patrulhamento na área
para a qual estava escalada", descreveu o MPCE, na denúncia.
Um dos fatos relatados pelo MPCE na denúncia aconteceu no dia 22 de
abril de 2023. Escutas colocadas pela Coordenadoria de Inteligência (Coin) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), na viatura utilizada pela composição policial formada pelo sargento Raimundo Gleison Ferreira Barbosa, o cabo Alisson Pinto Silva e o soldado Alexsandro Barbosa Matias, captaram o trio falando que tinha que entrar em uma rua da Comunidade, às 20h14.
"Por meio das imagens captadas, é possível visualizar a VTR em
deslocamento por volta das 20:15:38, e, por volta das 20:16:45,
percebe-se que a VTR entra em uma rua mais estreita, e é nesse momento
que é possível ouvir um dos policiais dizendo: 'Bora meu fi, quero sair
fora daqui'", narrou o Ministério Público.
No minuto seguinte, às 20h17, "é possível ver um rapaz, vestindo uma
bermuda escura, se aproximando da VTR ao lado do passageiro, momento em
que o passageiro se desloca para próximo do vidro e é ouvida a seguinte
frase: 'Bora meu fi, agilidade'. Nesse momento, é bastante provável que o indivíduo tenha jogado o pagamento da 'cota' para dentro da viatura".
"Logo em seguida, às 20:17:26, o policial que estava no banco do
passageiro faz um comentário: 'susto que eu tomei foi naquele dia que
não vi ninguém, doido. O doido escondido atrás da porta, só vi o negócio
caindo'; o que confirma o modus operandi desse grupo", concluiu o Ministério Público.
Várias voltas até receber a 'cota'
O modus operandi se repetiu uma semana depois, no dia 29 de abril. A composição policial era formada pelos mesmos três PMs, com o acréscimo do cabo José Dantes Barbosa Braga.
Os PMs teriam chegado pela região às 10h41, questionado a uma pessoa
se "vai dar certo?" e saído. Às 10h52, os militares voltam ao local, e
um deles diz "está vindo sem nada na mão". Seis minutos depois, uma nova
abordagem, e um suspeito pede mais um tempo.
Segundo o MPCE, "às 11:00:50, a viatura passa e é possível ver o
policial que está no passageiro se deslocando um pouco mais para perto
do motorista, e falando: 'desenrola aí, meu peixe'?! E depois:
'atividade, atividade, cuida! Conseguir o dinheiro'. Depois desse fato,
eles saem da região".
Mais uma vez, constata-se que os agentes de segurança pública, em
serviço e utilizando viaturas da PMCE, aceitam propina ao entrarem em
comunidades. O percurso realizado é bastante rápido, os policiais dão
uma volta na comunidade até receberem a 'cota' e, no caso em questão,
passam mais de uma vez até receberem o valor."
Os policiais militares "permanecem dentro do veículo e ficam pouco
tempo nas redondezas. E, novamente, após receberem o valor, a viatura
deixa o local sem ter realizado seu trabalho de patrulhamento na área
para a qual estava designada", acrescentou o Órgão.
Como funcionava o esquema criminoso
O pagamento de propina e o cometimento de outros crimes, pela
organização criminosa, aconteceram entre o fim de 2022 e o dia da
Operação Kleptonomos, deflagrada pelo Ministério Público do Ceará em 29
de julho deste ano. 16 PMs foram presos e afastados das funções.
R$ 300 mil
pode ter sido o faturamento da organização criminosa, segundo um
balanço parcial, divulgado pelo coordenador do Grupo de Atuação Especial
de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), o promotor de justiça
Adriano Saraiva, no dia da deflagração da Operação.
O MPCE denunciou os 16 policiais militares pelos crimes de integrar
organização criminosa, colaborar em grupo para o tráfico de drogas e
corrupção passiva. A denúncia foi recebida pela Vara da Auditoria
Militar do Ceará e os agentes de segurança viraram réus, no último dia 2
de julho.
Veja a lista de PMs presos e denunciados:
- Airton Uchoa de Sousa Pereira (soldado PM);
- Alexsandro Barbosa Matias (soldado PM);
- Alisson Pinto Silva (cabo PM);
- Dalite Paulo Maia Pinheiro (soldado PM);
- Danyvan Robert Souza da Silva (cabo PM);
- Flauber Pereira Assunção (sargento PM);
- Israel Rodrigues Costa (soldado PM);
- José Dantes Barbosa Braga (cabo PM);
- José Narcellyo do Nascimento Santana (subtenente PM);
- Luan Alberto da Silva Lopes (soldado PM);
- Marcondes de Oliveira Braga (sargento PM);
- Márcio Xavier Moreno (sargento PM);
- Raimundo Gleison Ferreira Barbosa (sargento PM);
- Roberto Montenegro da Cunha Neto (cabo PM);
- Tiago Daniel Martins Costa (cabo PM);
- Thiago Monteiro da Costa (soldado PM).
Os investigadores descobriram que os policiais militares protegiam criminosos em troca de propina, além de extorquir traficantes rivais. O grupo de PMs atuava principalmente na comunidade do Pôr do Sol, no Coaçu e na Paupina - que ficam na Grande Messejana, em Fortaleza. A região é dominada pela facção carioca Comando Vermelho (CV).
Os policiais militares cometiam os crimes durante o serviço policial,
enquanto utilizavam fardas e viaturas da Polícia Militar, diz o MPCE.
"Todos se utilizam das ameaças de execução dos serviços próprios do
estado, no qual a ostensividade é intrínseca à Polícia Militar, para
intimidar e prejudicar o tráfico, afirmando que ficarão no local
trabalhando e impedindo a venda de droga caso não recebam os valores
solicitados", apontou o Ministério Público.
A defesa de cinco policiais militares denunciados e presos,
representada pelos advogados Manuel Micias Bezerra, Francisco José
Sabino Sá e Filipe D'Ávila, destaca que, "após ter acesso aos autos da
investigação, constatou-se que o procedimento investigativo ocorreu no
período de novembro de 2022 a novembro de 2023, quando teriam ocorrido
os supostos fatos atribuídos aos policiais".
Causa estranheza à defesa o fato de que, ao longo de toda a
investigação conduzida sob sigilo absoluto, nenhum dos policiais foi
ouvido ou intimado a prestar esclarecimentos, sendo-lhes negada, desde o
início, a oportunidade de apresentarem qualquer defesa ou versão dos
fatos. A investigação, portanto, seguiu de forma unilateral, sem
garantir ao contraditório nem a ampla defesa em fase pré-processual."
Segundo os advogados, "as prisões preventivas ora executadas, mais de
dois anos após os supostos acontecimentos, revelam-se absolutamente
extemporâneas, sem amparo em fatos atuais que justifiquem a medida
extrema (ultima ratio), principalmente diante da primariedade dos
acusados, do exercício regular de suas funções públicas, da existência
de domicílio fixo e da ausência de riscos relevantes no momento em que a
medida é imposta, uma vez que a prisão preventiva exige
contemporaneidade dos fatos"
*Diário do Nordeste