Condições
sub-humanas. Insetos mortos ao lado de utensílios de higiene. Aparência
decadente. Lugar fétido. Refeições feitas ao lado do aparelho sanitário.
Pessoas amontoadas em espaço superlotado. 50 dias sem ver a luz do sol.
Revolta em cada olhar. A descrição, que mais remete a um filme de
terror, é a realidade vivida por jovens internos de três Centros
Educacionais destinados ao cumprimento de medidas socioeducativas em
Fortaleza, segundo relatório feito em parceria pelo Poder Judiciário, o
Ministério Público e a Defensoria Pública.
Os locais, que
deveriam servir para reeducar e devolver os jovens em conflito com a Lei
em condições de iniciarem uma nova caminhada na sociedade, clamam por
ações urgentes. O resultado do que se vê nos Centros, segundo a Justiça,
é refletido nos altos índices de reincidência dos seus egressos - quase
100%, segundo dados próprios - além das inúmeras fugas e rebeliões. No
último sábado, por exemplo, cerca de 10 jovens protagonizaram um
princípio de rebelião no Centro Educacional Cardeal Aloísio Lorscheider
(Cecal), no bairro José Walter. Na ocasião, um dos internos e dois
instrutores que estavam de plantão ficaram feridos. Os jovens reclamavam
da superlotação do espaço e pediam transferência.
Visitas
O juiz titular
da 5ª Vara da Infância e Juventude, Manoel Clístenes de Façanha, a
promotora de Justiça Maria de Fátima Pereira Valente e os defensores
públicos Andréa Pereira Rebouças e Ricardo César Pires Batista
inspecionaram os Centros Educacionais Cardeal Aloísio Lorscheider
(Cecal), Dom Bosco e Patativa do Assaré (Cepa). "A escolha dos três foi
motivada pelas sucessivas rebeliões e fugas. Somente no Cepa, foram
quatro este ano. No Dom Bosco, foram cinco", justificaram.
De acordo com o
relatório das autoridades, acessado com exclusividade pela reportagem
do Diário do Nordeste, a situação das unidades é avaliada como precária.
Ao final, são indicadas providências a serem tomadas pelo Estado do
Ceará, pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) e
pela própria direção dos Centros Educacionais, em relação à salvaguarda e
garantia dos direitos dos socioeducandos, conforme determina o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei do Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (SINASE).
"Encontramos
meninos dormindo no chão. Em um dos centros, estavam há 50 dias sem sair
dos dormitórios, nem para tomar banho de sol. Vimos insetos mortos ao
lado dos itens de higiene e utensílios usados na alimentação. Os lugares
fedem. Todos os internos apresentam problemas de pele. Num dormitório
que deveria abrigar dois jovens, vimos até nove. É um ambiente
insalubre, indigno", relatou a defensora pública Andréa Rebouças. "A
situação é muito pior do que imaginávamos", frisou o juiz Manoel
Clístenes.
Para as
autoridades, a falta de orientadores educacionais nos Centros e a
ausência de prédios semelhantes no Interior do Ceará potencializam o
problema.
"Sem os
orientadores e instrutores, não tem como tirar os adolescentes dos
dormitórios e encaminhá-los para as atividades. Ficando no ócio, eles se
rebelam e destroem as casas. Já a superlotação, compromete tudo. Não há
Centros Educacionais no Interior. Mais da metade dos que estão internos
nas unidades de Fortaleza, não são daqui", aponta Clístenes.
A defensora
pública Andréa Rebouças detalha que conseguiu perceber durante as
visitas a importância dos profissionais na reinclusão social dos jovens.
"Sem o socioeducador, nada funciona dentro da 'casa'. Os meninos se
alimentam sempre dentro dos dormitórios, com o alimento entregue pelas
grades. Eles não usam os refeitórios. Os dormitórios não têm lixeira,
então surge a questão da sujeira, resquícios de alimentos ficam ao chão.
Tudo em decorrência da falta de educadores sociais para acompanhá-los",
defende.
Já o também
defensor público Ricardo César define os Centros Educacionais como
verdadeiras prisões para os adolescentes. "Eles não diferem de nenhum
presídio que conhecemos. Tem camas de pedra onde alguns dormem. Já
outros, dormem perto de onde tem um bojo que serve para os internos
fazerem as necessidades fisiológicas. No mesmo local, eles guardam
material de higiene, pratos, copos, e usam o espaço até para fazerem as
refeições", relatou.
Superlotação
O outro grande
problema identificado pelas autoridades é a superlotação dos Centros
Educacionais. Segundo os dados obtidos, há quase o triplo da quantidade
máxima de internos nas unidades. "O Centro Dom Bosco tem a capacidade de
60 meninos. No dia que visitamos tinha 164. Este número já passou de
186", disse o defensor público Ricardo César.
Com a
problemática, os ânimos se alteram dentro das paredes sujas dos prédios.
Com isso, as rebeliões e fugas se tornam inevitáveis. Para
concretizarem seus planos, os jovens internos não poupam esforços e
muitas vezes destroem o lugar que os encarcera.
Clístenes conta
ainda histórias de jovens que, diante de uma nova oportunidade,
preferiram trocar a liberdade por uma chance de continuar a sonhar com
um futuro melhor, mesmo que passando mais alguns dias atrás de grades.
"Recebi três pedidos que me sensibilizaram. Eles pediram para ficar
internados só para poderem concluir o estágio nas fábricas, dentro dos
Centros, para quando saírem terem o emprego garantido. Você não pode
dizer jamais que um indivíduo desses não queira melhorar de vida, dizer
que eles não têm jeito. Uma pessoa que pede para ficar presa para
terminar um estágio, só para quando sair, poder trabalhar naquela
empresa. Isso para mim é uma coisa espetacular", ponderou.
Entregue
O grupo já
entregou o relatório ao titular da STDS, Josbertini Virgínio Clementino.
"Já conseguimos que entregassem um novo kit com colchão, escova de
dentes, roupa e outros itens aos internos do Dom Bosco", disse a
defensora Andréa Rebouças.
R$ 3,7 milhões serão usados em reformas de Centros, diz STDS
Há uma luz no
fim do túnel para a situação. Pelo menos, é o que garante a Secretaria
do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS). Em nota, a Célula de
Proteção Social Especial da STDS afirmou que os três Centros
Educacionais visitados pelas autoridades passarão por reforma com
recursos de R$ 3,7 milhões, já garantidos.
Além disso,
outros quatro Centros estão em construção em todo o Estado. Dois deles,
um no Canindezinho e outro em Sobral, já estão prontos, faltando apenas
equipamentos e profissionais. Os demais, um também em Sobral e outro em
Juazeiro do Norte, já estão licitados. Ainda em Juazeiro, a atual
unidade será reformada. Segundo a pasta, as 680 vagas atuais saltarão
para 950. Atualmente, há 1.040 jovens internos nos Centros. 40% deles
são fortalezenses.
Ainda de acordo
com a STDS, 300 instrutores estão sendo capacitados para serem
incorporados às 14 unidades existentes em todo o Estado, das quais nove
estão em Fortaleza.
Já sobre as
questões de segurança, a Secretaria garantiu que "firmou termo de
cooperação técnica com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social
(SSPDS) para a segurança externa das unidades, bem como para qualificar
o processo de recrutamento e seleção dos instrutores educacionais".
O relatório das
autoridades apontou, ainda, problemas de insalubridade nos três Centros
Educacionais que abriga os jovens em conflito com a Lei em Fortaleza
visitados pelo grupo.
A reportagem
entrou em contato com a Vigilância Sanitária do Município. A entidade
alegou que "foi demandada e já realizou as providências necessárias,
emitindo os laudos fiscais para os relatórios técnicos e enviou a
documentação para a 5ª Vara, que é quem vai avaliar e tomar as
providências necessárias".
Setra quer discussão intersetorial
A Secretaria
Municipal de Trabalho (Setra), por meio de seu titular, Cláudio Ricardo,
prevê mais discussões sobre a situação dos adolescentes e, em
específico, as medidas em meio aberto para a reinserção social dos
jovens em conflito com a Lei.
Por telefone,
Cláudio informou que a pasta prepara um seminário em que o tema será
discutido pelas principais autoridades e órgãos diretamente ligados ao
assunto.
"Essas medidas
carecem de aperfeiçoamento, e estamos buscando caminhos para melhorar
este atendimento. Estamos organizando um seminário para discutir este
itinerário das medidas intersetorialmente, para discutir os vários
caminhos que podemos tomar para melhorar estas medidas", disse.
Em média, mensalmente, a Setra realiza de 2.300 a 2.500 atendimentos a jovens, de acordo com dados próprios.
Atualmente,
estão sendo realizados, segundo Cláudio Ricardo, 2.392 atendimentos,
sendo 2.031 em liberdade assistida e 361 em prestação de serviços à
comunidade.
O titular da
Setra, expondo os números, questionou as afirmações feitas pelas
autoridades, sobre a reincidência dos adolescentes, após aplicadas as
medidas em meio aberto.
"Estamos nesse
momento fechando um relatório com o perfil destes jovens que estão
atualmente cumprindo as medidas em meio aberto. Os dados que temos até
agora é de que a reincidência destes jovens está entre 36% e 40%",
defendeu.
Levi de Freitas
Repórter
Repórter
Fonte: Diário do Nordeste