Quinze dos 28
integrantes do Circo Fantástico permanece em Ipu. A maioria voltou a
viver com suas famílias, em busca de ajuda financeira.
Foto: Alex Costa para o Intercept Brasil |
O Circo Fantástico Família Vilar
rodou diversas cidades do norte e nordeste do Brasil por 15 anos até
estacionar em Ipu, a 296 quilômetros de Fortaleza, quando o coronavírus
chegou ao país. Forçada a interromper as apresentações, a trupe teve de
se dispersar. Para não morrerem de fome, a maioria dos 28 integrantes
voltou a viver com suas famílias, em busca de ajuda financeira. Hoje,
restam 15 no acampamento, que se mantêm com doações da comunidade. A
situação do circo é um retrato da situação de penúria dos grupos de
artistas de rua, que não contam com patrocínios e dependem
exclusivamente das apresentações.
Dona do
Circo Fantástico, Maria Aparecida da Silva Vilar, a dona Cida como é
conhecida, diz nunca ter enfrentado uma crise financeira tão grande como
a de agora. “Eu amo o circo. Eu estou muito triste com tudo o que está
acontecendo. Não temos apoio de nada [do governo], só de Deus e da
população”, me disse.
A tenda permanece montada como nos bons tempos, mas vem sendo
corroída pelo desgaste natural. Os artistas remanescentes vivem em
ônibus precários, carentes de manutenção. Apesar das dificuldades, dona
Cida se agarra a esperança que arte pode operar transformações por onde
passa. “Já reergui esse circo com o apoio dos meus filhos e dos
artistas, e a gente pode fazer isso de novo”. Ela contou sua trajetória
ao Intercept.
Toda a sexta-feira, um morador de Ipu doa água potável aos artistas, que vivem em ônibus. |
‘Há quatro meses, eu fui informada que
o meu circo não poderia mais abrir as portas. Eu fiquei desesperada.
Passava noite e dia chorando. Antes da pandemia, as coisas já não
estavam tão boas. O Circo Fantástico é um circo humilde. A gente não tem
patrocínio como os grandes circos por aí. Já estava muito difícil se
manter, e agora ficou pior.
Para você ter uma ideia, fomos informados sobre a quarentena um dia
antes de um evento onde venderíamos dois ingressos a R$ 5. O valor
normal é R$ 10 por pessoa. A procura pelo espetáculo estava muito baixa,
e os artistas estavam sem pagamento. Mas não foi possível fazer. Meu
primeiro pensamento foi: como as 28 pessoas que vivem aqui vão
sobreviver?
Alguns artistas conseguiram ir para casa de parentes, mas 15 deles
ficaram no circo. Nos primeiros dias de fechamento, eu estava
inconsolável. Meus filhos me levaram ao médico que me receitou um
calmante para eu conseguir dormir. Eles ficaram com medo de que eu
passasse mal, já que sofro de pressão alta e diabetes. Desde então, já
se passaram quase cinco meses em que estamos estacionados em Ipu, no
interior do Ceará, sem poder trabalhar e sem nenhum apoio do governo.
Ar-condicionado do ônibus onde mora Dona Cida estragou, e a água que verteu do vazamento molhou seu armário. |
Hoje temos arroz, feijão e cuscuz para comer,
graças à comunidade que tem nos ajudado com cestas básicas. Ganhamos o
gás. Um rapaz tem doado água potável toda sexta-feira. A loja ao lado do
nosso acampamento tem cedido água para tomarmos banho, lavarmos as
nossas roupas e também para cozinhar. Como a intenção não era ficar
tanto tempo em uma mesma cidade, nem pensamos em pedir a ligação da
água. Acredito que não cortaram a nossa luz ainda devido à pandemia, já
que tenho mais de R$ 2 mil de contas para pagar em atraso.
Além disso, falta dinheiro para arrumar o motor do ônibus. Todos os
nossos veículos precisam de revisão e reformas, afinal é onde a gente
mora também. Sem dinheiro, a gente vai adaptando. No ônibus em que moro,
já não funciona mais o ar-condicionado. A água que vazava dele afetou a
madeira do local onde eu guardava as minhas roupas. Para suportar o
calor, eu consegui um ventilador que deixo ao lado da minha cama. A
parte elétrica do banheiro também não funciona mais.
Sem recursos, também é impossível investir na estrutura do circo. A
lona já está rasgada. Não tenho como comprar uma nova ou o tecido para
que eu mesma costure e improvise algo. Costumo dizer que o Fantástico
pode não ter estrutura, mas a gente sabe encenar. Nosso espetáculo é
incrível. Os artistas são bons. Um dos meus filhos já fez parte de
grupos circenses na Europa e na China. Temos conhecimento. Repito: somos
bons artistas!
Este é o momento mais difícil em 15 anos de administração do Circo
Fantástico. Quando o meu marido me traiu e foi embora com a antiga
cozinheira do circo, ele levou metade de toda a estrutura. Eu tinha 45
anos. Ele me deixou com os nossos seis filhos e o desafio de reerguer o
circo. Muita gente não acreditava que eu conseguiria. Na ocasião, eu
cheguei a viajar caminhando, transportando as coisas no lombo de um
burro. E eu consegui, porque eu podia trabalhar. Mas agora eu não sei o
que fazer, me resta contar com a fé em Deus e com a solidariedade do
povo enquanto não posso abrir as portas.
Todo dia, um morador de Ipu entrega sacolas de alimentos à trupe remanescente. |
Uma história construída na estrada
Quando eu era criança morava em Belo Jardim, Pernambuco. Vivia com a
minha mãe e minhas nove irmãs. Uma delas se apaixonou por um artista de
um circo que havia chegado à cidade, e resolveu fugir com ele. Eu estava
encantada com o mundo circense e fui atrás dela. Eu tinha 12, e ela 14
anos. Minha mãe descobriu a primeira tentativa de fuga e pediu para um
parente policial prender nós duas. Além disso, a polícia deu 24h para o
circo ir embora da cidade.
Ficamos dois dias presas, mas nem isso me fez desistir. Uma amiga me
deu o dinheiro e peguei o trem e fui atrás do circo, que estava na
cidade vizinha. Minha irmã chegou dias depois. O Juizado de Menores
encontrou a gente, mas minha mãe desistiu de nos levar de volta para
casa.
O namorado da minha irmã disse que cuidaria de nós, mas não foi o que
aconteceu. Eu tinha 13 anos quando ele me entregou ao dono do circo,
que, na ocasião, tinha 36 anos. E vivi como esposa dele até os meus 45
anos, quando ele partiu. Logo, me tornei trapezista, malabarista e
apresentei espetáculos, mas nas horas vagas ficava trancada na casa
dele.
Aos 15 anos engravidei do meu primeiro filho. Aos 25 anos, eu já
tinha cinco filhos com ele. Dois deles eu perdi ainda bebês por
complicações de saúde. Na estrada com o circo, adotei outras três
crianças de diferentes famílias que nos abordaram sem ter condições de
ficar com elas. Todos foram criados no circo.
Minha irmã permaneceu no circo apenas dois anos. Depois que ela foi
embora, voltei a ver alguém da minha família novamente 10 anos mais
tarde quando o circo estacionou em uma cidade próxima a Belo Jardim. Meu
marido me mantinha presa em casa. A saudade era tanta que eu o
enfrentei. Lembro de ter dito: é isso ou divórcio. E ele permitiu que eu
fosse. Minha mãe achava que eu estava morta. No dia que ela me viu, a
emoção foi tanta que desmaiou.
Meu marido era muito bruto. Sempre que ele
bebia, batia em mim. E as crianças viam toda essa violência. Até que
resolvi que as coisas seriam diferentes. Deixei um cassetete escondido
em casa e revidei. Bati nas costas dele e ele caiu. Nesse dia, eu estava
com 30 anos, olhei nos olhos dele e disse que ele jamais me bateria de
novo. E ele nunca mais tocou um dedo em mim.
Graças a ajuda de uma amiga consegui organizar meus documentos e
financiei uma casa pela Caixa Econômica, em Paracuru, cerca de 1h30 de
Fortaleza. A preocupação dos meus filhos era que eu não tivesse um lugar
na minha velhice. Já são seis anos pagando R$ 514 por mês – ainda
faltam 24 anos.
Quando a quarentena começou, a pessoa que alugava o
imóvel anunciou a saída. Foi outro desespero para mim. O aluguel era o
valor da parcela. Mas Deus abençoou e consegui outro inquilino. Ainda
posso sonhar com a minha casinha, que um dia vai ser um lugar de parada
para toda a minha família.
Eu ainda quero rodar com o meu circo. Eu sei que as coisas estão
difíceis, mas acredito que vamos sair dessa. Antes de ir embora de Ipu,
espero ter condições de fazer um grande espetáculo gratuito em
agradecimento a todas as pessoas que nos ajudaram. Dinheiro eu não
tenho, mas eu sonho bastante.
Por agora, peço a Deus para me proteger dessa doença. Não quero
morrer sozinha, distante de tudo o que eu mais amo. Já disse para os
meus filhos que, quando eu partir, quero ser velada no Circo Fantástico,
depois de um lindo espetáculo. Porque minha vida é o circo!
Fonte: The Intercept Brasil