Ano deve terminar com mais de 5.000 assassinatos no Estado (FOTO: Reprodução/TV Jangadeiro) |
O mês de dezembro ainda nem começou, mas 2017 já é o ano com o maior número de assassinatos registrados na história do Estado.
Até 19 de novembro, 4.492 pessoas foram mortas no Ceará, 53 a mais do
que o ano mais violento até então — 2014, que registrou 4.439 crimes do
tipo.
Os dados são baseados nas estatísticas preliminares disponibilizadas
pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) em seu
site. Mantida a média de quase 14 mortes por dia, o Ceará deve superar a
marca de 5.000 homicídios neste ano.
A partir de 2013, a SSPDS adotou uma nova metodologia na contagem dos
assassinatos, o que impede comparações mais precisas. Mas outros
indicadores mostram que o Ceará está diante de uma situação sem precedentes.
É o caso, por exemplo, do Mapa da Violência, um estudo feito
desde 1998, capitaneado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz. No
primeiro ano analisado, 1996, o estudo mostrava que 1.356 pessoas haviam
sido mortas no Estado, conforme os dados obtidos com a Base de Dados
Nacional do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Datasus, do
Ministério da Saúde.
Era apenas o segundo ano em que o Ceará superava a marca de 1000 homicídios. De 1995 em diante, o Estado só registraria menos que 1.000 homicídios anuais em 1998.
Por um lado, de 1980 a 2010, a população cearense cresceu 62%, saindo
de 5.288.253 para 8.452.381, conforme o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Por outro, no mesmo período, os
homicídios cresceram mais de 400%, saindo de 509 para 2692, conforme o
Mapa da Violência. A evolução também se mostra evidente em análise
comparativa, como faz Waiselfsz no Mapa da Violência 2016.
“Estados relativamente tranquilos no ano 2000 ingressam numa forte
voragem de violência, como o Ceará, que de uma taxa de HAF [homicidio
por arma de fogo] de 9,4 29 por 100 mil, em 2000, passa para 42,9, em
2014 (de 19º para 2º lugar)”.
Para o historiador Airton de Farias, autor de História do Ceará, o período atual não é o único marcado pela violência no Estado, mas ele assume uma nova configuração. “Se for parar para ver, o Ceará é um estado sempre pautado pela violência. Não é de hoje só que é violento.
Sempre houve no Ceará uma exaltação às armas, à morte”, ele diz,
citando como exemplo a repressão à Confederação do Equador, que,
associada à seca, dizimou um terço da população cearense, segundo alguns
autores.
Airton ressalta os diversos aspectos necessários para explicar o
fenômeno da violência — da crise social às mudança das políticas de
segurança, que foram da polícia comunitária do Ronda do Quarteirão ao
foco na repressão do Batalhão de Policiamento de Rondas de Ações
Intensivas e Ostensivas (BPRaio).
Porém, ele cita a “explosão” desse índices a partir da difusão das drogas ocorrida a partir das décadas de 1980 e 1990. Em
agosto de 1986, a Polícia Federal anunciava a maior apreensão de
cocaína da história do Ceará: 650 gramas, apreendidos com mineiros.
Até então, a droga do Ceará era a maconha, lembra Airton de Farias. É
aí que entra em cena a cocaína e seu correlato mais destrutivo, o
crack. Atualmente, estão inscritos, ele cita, em um novo fenômeno: as
facções criminosas. Consigo, a demarcação territorial do crime.
Um novo inimigo
Em meados do fim de 2015, as facções passam a pautar o noticiário
policial, principalmente, as provenientes do Sudeste. Até então, estavam
restritas a ações pontuais, como o Furto ao Banco Central, em 2005,
protagonizado por membros do Primeiro Comando da Capital (PCC). Uma das
lideranças do PCC, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, é acusado
de dois assaltos milionários no Estado, ocorridos em 1999 e 2000, contra
duas empresas de seguranças.
Mas, agora, as facções aportavam de vez no Estado, com passeatas,
foguetórios e, ainda, pacificações. Coincidência — como afirmava o
governo, que sequer reconhecia a existência desses grupos em terras
alencarinas — ou não, os números de homicídios caíram — ainda que
estivessem longe dos números de décadas passadas. Dos 4019 assassinatos
de 2015, o Estado passou, em 2016, para 3407. Em Fortaleza, as reduções
foram ainda mais sentidas.
A nova configuração foi atestada, por exemplo, pelos pesquisadores do
Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, no
relatório Cada Vida Importa, em entrevistas com moradores de regiões marcadas pela violência.
“Além de menos mortes, os acordos entre as facções criminosas
teriam acabado com alguns conflitos de longa data entre territórios,
permitindo que os moradores passassem a transitar livremente pelas
comunidades. ‘Disseram que não matariam mais ninguém, mas antes
era uma mortandade muito grande aqui no bairro. Pra ter noção, quem
mora desse lado da avenida não podia andar do outro lado. Agora, estão
deixando’, afirma a mãe de um adolescente [assassinado]”.
Mas a paz não durou muito tempo. Ainda em 2016, PCC e Comando
Vermelho (CV) romperam uma aliança histórica — o PCC chegava a citar o
CV como exemplo em seu primeiro estatuto, datado de meados de 1993. Como
em um efeito dominó, a declaração de guerra provocou uma escalada da
violência, primeiros nos presídios — como na chacina que deixou 56
integrantes do PCC mortos em um presídio de Manaus (AM), em janeiro de
2017 —, depois nas ruas.
No plano local, o CV, assim como sua aliada Família do Norte (FDN) —
responsável pelo massacre em Manaus —, ainda contraiu rivalidade com a
maior facção local, a Guardiões do Estado (GDE), que surgiu, tudo
indica, em 1º de janeiro de 2016. O conflito entre essas duas frentes
estaria por trás de chacinas como a ocorridas em junho em Horizonte e em Aquiraz.
Dessa vez, o Governo do Estado reconheceu a existência das facções.
Passou, inclusive, a creditar a elas o aumento do indicadores de
violência.
O Tribuna do Ceará solicitou à SSPDS entrevista
sobre o tema com o secretário André Costa. Por meio de assessoria, a
pasta, no entanto, afirmou que tanto André Costa, quanto o governador
Camilo Santana (PT) se debruçaram sobre o assunto na terça-feira (13).
Naquela ocasião, ambos apresentavam os índices de criminalidade do mês
de outubro, em entrevista coletiva.
“Não recebemos um centavo da União. Cem por cento dos investimentos em segurança públicas foram feitos pelo Estado”. (Camilo Santana, governador do Estado)
Ambos destacaram a situação “atípica” pela qual o País passa com o
confronto entre facções. Camilo disse ser impossível resolver o problema
sem a existência de um plano nacional de enfrentamento à criminalidade.
É a União, argumentou, que tem competência para fiscalizar as
fronteiras e combater o tráfico interestadual de drogas e armas.
“Não recebemos um centavo da União. Cem por cento dos investimentos
em segurança públicas foram feitos pelo Estado”, criticou. Além disso, é
preciso, segundo ele, repensar a legislação sobre o tema.
“Nunca se prendeu tanto no Ceará. Tivemos um aumento de 20%
de presos no Estado, quase 30% a mais com relação ao número de apreensão
de armas e um aumento de quase 200% quando falamos de entorpecentes.
Ano passado quatro toneladas e nós já vamos com sete toneladas em 2017.
A Polícia está agindo, trabalhando, nunca se fez tanto investimento em
pessoal, equipamento, armas e inteligência, e temos ferramentas a serem
implementadas ainda”, afirmou Camilo.
Já André Costa, ressaltou o envolvimento das vítimas de homicídio no
Estado com o crime. Estudos da SSPDS mostram que 61% dos mortos entre
janeiro e julho deste ano em Fortaleza tinham antecedentes criminais. Do
52% dos homicídios com causa determinada pela Polícia, 28% tinha
relação com facções. E 81% tinha envolvimento com drogas, seja consumo
ou tráfico.
Citando como exemplo o assassinato de quatro internos do Centro Mártir Francisca, na segunda (13),
o secretário disse que muito desses homicídios ocorrem unicamente pela
identificação com facções inimigas. “Aqueles jovens não tinham feito
nada para aquelas outras pessoas”, disse. “É um desafio que nunca foi enfrentado aqui no Estado nem na região Nordeste. Nunca se viu esse grau de perversidade“.
André Costa, no entanto, vê também no trabalho da Polícia um motivo
para a acentuação dos homicídios. Como áreas antes reduto da
criminalidade são ocupadas pelas forças policiais, esses bandidos migram
para outras localidades. Estas já contando com criminosos, força-se um
confronto entre as partes, gerando os homicídios, argumenta André Costa.
Só tráfico de drogas?
Para o sociólogo César Barreira, é preciso desmitificar a noção de
que o aumento nas estatísticas de homicídios está unicamente ligado ao
tráfico de drogas. “A resolução de conflitos na base da violência também
é um elemento que pode explicar esse aumento. As facções são muito
recentes”, diz o pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência
(LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Para o pesquisador, faltam políticas efetivas de combate aos
homicídios, assim como para os jovens, um dos principais afetados nessa
epidemia. “O jovem comete delitos, mas ele é muito mais vítima que
infrator. Nesse sentido, ele precisa muito de mais proteção que de
punição. Com políticas sociais, como escolas em tempos integrais e áreas
de lazer, é isso que os afastam da violência”.
Saiba mais
Em 2013, a SSPDS passou a reunir, nos chamados Crimes Violentos
Letais Intencionais (CVLIs), episódios como lesões corporais seguidas de
morte e latrocínios, além dos homicídios. As estatísticas passaram a
ser alimentadas a partir das ocorrências registradas pelo Comando de
Policiamento do Interior (CPI) e da Coordenadoria Integrada de Operações
de Segurança (Ciops). Em 2012, sem lesões corporais seguidas de morte e
latrocínios, a SSPDS havia registrado 3.565 homicídios.
Fonte: Tribuna do Ceará