As características da doença lembram a leishmaniose visceral, mas a
análise do DNA do micro-organismo revelou que se trata de um parasita
novo
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Cientistas identificam novo parasita que já infectou mais de cem pessoas no Nordeste - Divulgação. |
Um parasita microscópico que até hoje não tinha sido identificado pela ciência já infectou mais de uma centena de pessoas no Nordeste, causando lesões graves no fígado, no baço e na pele e matando pelo menos um desses pacientes.
As características da doença lembram a leishmaniose visceral,
moléstia endêmica na região, normalmente causada pelo
protozoário Leishmania infantum. Mas a análise do DNA do micro-organismo
revelou que se trata de um parasita novo, cujos parentes mais próximos
costumam infectar apenas insetos.
Os dados acabam de ser publicados por pesquisadores da UFSCar
(Universidade Federal de São Carlos), da Universidade Federal de Sergipe
e da USP de Ribeirão Preto na revista especializada Emerging Infectious
Diseases.
A equipe ainda não sabe como o micróbio acabou infectando os 141 pacientes que eles conseguiram rastrear até agora (o número real de afetados pode, é claro, ser muito mais alto).
O causador da leishmaniose é transmitido pelo chamado mosquito-palha ou
flebotomíneo.
Entretanto, os primos mais próximos do novo parasita, que
pertencem ao gênero Crithidia, costumam estar presentes no organismo de
anofelinos (os transmissores da malária) e mosquitos do gênero Culex,
como o pernilongo comum.
"O que a gente sabe é que, nesse grupo de protozoários, a transição
em que a espécie deixa de ser um parasita que afeta apenas insetos e
passa a infectar também vertebrados acontece nos casos em que o inseto
se alimenta de sangue", explica a bióloga Sandra Maruyama, da UFSCar,
uma das autoras do estudo. "Estudar esse protozoário pode ser uma
ferramenta importante para entender como o salto acontece."
Além disso, as implicações para a saúde pública podem ser
consideráveis. O novo parasita só acabou sendo flagrado porque produzia
sintomas inesperados –feridas avermelhadas na pele do corpo todo, em vez
das feridas mais localizadas que o Leishmania normalmente causa, por
exemplo – e não respondia ao tratamento tradicional.
"Mas que diabo será isso?" foi a reação de João Santana da Silva, da
USP de Ribeirão Preto, quando análises de DNA preliminares indicaram que
o micro-organismo, até então considerado apenas outra variante
de Leishmania resistente a medicamentos, mostrou não ter parentesco
próximo com as formas já conhecidas.
A confusão é compreensível porque, ao microscópio, muitos
protozoários desse grande grupo, que inclui também o causador do mal de
Chagas, são bastantes parecidos uns com os outros. "Hoje a gente já
percebe que, enquanto o Leishmania é mais alongado e tem um flagelo
["cauda"] comprido, o novo parasita é mais achatado, com flagelo mais
curto", aponta Maruyama.
Uma clareza maior acerca do enigma veio com a "leitura" completa do
genoma do micro-organismo e de sua comparação detalhada com o de outros
protozoários. Há diferenças substanciais entre o DNA dele e o das várias
espécies de Leishmania, a começar pelo tamanho do "livro" do genoma: 33
milhões de pares de letras químicas de DNA no caso do causador da
leishmaniose contra cerca de 54 milhões no novo parasita (o genoma
humano, bem mais prolixo, chega a 3 bilhões).
Início das investigações
Os dados genômicos concluem uma história que começou em 2010, quando
Roque Pacheco Almeida, do Departamento de Medicina da Universidade
Federal de Sergipe, teve o primeiro contato com o paciente que, após
três tentativas de tratamento, acabou morrendo.
"Nesse caso, temos certeza da causa. Estamos investigando outro caso,
no qual o paciente também não respondia ao tratamento e perdemos
contato com ele. Outro morreu recentemente, com achados clínicos fora do
esperado. Estamos verificando se foi pelo mesmo parasita", conta
Almeida.
Ele lembra que, segundo o Ministério da Saúde, Sergipe tem uma taxa
elevada de mortalidade causada por leishmaniose visceral –cerca de 15%
dos infectados, enquanto o normal seria 6%. "Talvez estejamos diante de
um grande problema decorrente da presença de um novo agente infeccioso,
para o qual não dispomos ainda de terapêutica adequada."
De fato, ainda há muito a fazer para compreender a natureza e a ação
do parasita. Os pesquisadores agora pretendem entender o ciclo de vida
da espécie, identificando os insetos capazes de transmiti-la e outros
possíveis hospedeiros (já se sabe que o micro-organismo é capaz de
causar manifestações da doença em camundongos, por exemplo).
É esperado que o avanço de mudanças climáticas e ambientais coloquem a
população em contato cada vez mais frequente com novos causadores de
doenças, em especial em regiões tropicais como o Brasil. "Estudar essa
espécie pode funcionar como uma escola para enfrentar esse desafio", diz
Santana da Silva.
O trabalho foi realizado no âmbito do Crid (Centro de Pesquisa em
Doenças Inflamatórias) e do programa Jovem Pesquisador em Centros
Emergentes, ambos criados com financiamento da Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Também participaram do estudo
pesquisadores da Fiocruz e dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA.
Fonte: Diário do Nordeste