Um
 litígio secular, iniciado em 1758, entre o Piauí e o Ceará permanece 
até hoje. Os dois estados disputam uma área de terras que fica na Serra 
da Ibiapaba e envolve 13 municípios cearenses e oito piauienses. Ao 
todo, são 3 mil quilômetros quadrados de terras e cerca de 25 mil 
pessoas envolvidas no imbróglio.
O
 caso está tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria 
da ministra Cármen Lúcia, que solicitou ao Exército uma perícia na 
região para decidir a quem pertencem as terras. No mês passado, foi 
nomeado o perito. A ação foi impetrada pelo governo do Piauí ainda em 
2011 e já custou R$ 6,910 milhões aos cofres piauienses. Os governos do 
Piauí e Ceará se manifestaram sobre esta disputa.
Caso
 as terras sejam transferidas ao Piauí, cerca de 25 mil cearenses devem 
“se tornar” piauienses. A questão divide os moradores da região, que tem
 grande potencial econômico, especialmente na área do agronegócio. Parte
 da população de algumas das cidades é contrária a essa mudança de 
naturalidade, outra, é a favor.
O
 assunto foi tema da dissertação de mestrado, pela Universidade Federal 
do Piauí (UFPI), do geógrafo Eric de Melo que, após extensa pesquisa, é 
taxativo: o Piauí sempre teve direito ao território e o Ceará permanece 
avançando sobre terras piauienses.
Ele
 diz que muitos mitos precisam ser desfeitos: o primeiro de que o Piauí 
nunca teve litoral e que o Ceará teria cedido o território ao estado. O 
segundo de que o trecho da Serra da Ibiapaba teria sido cedido ao Ceará 
nesta troca.
O
 tema, porém, é cheio de controvérsia. A deputada estadual cearense 
Augusta Brito, presidente do Comitê de Estudos de Limites e Divisas 
Territoriais do Ceará (Celditec), afirma que o estado possui, sim, 
argumentos legais e culturais para embasar a defesa que o território 
deve continuar pertencente ao Ceará. O colegiado é o órgão da Assembleia
 Legislativa responsável por acompanhar e discutir questões relacionadas
 a disputas territoriais no estado.
“Nós
 temos um decreto de 1880, que é o que respalda a nossa defesa 
juridicamente, como também vários outros documentos que foram 
conseguidos através das audiências públicas realizadas, na região da 
Ibiapaba principalmente; em Tianguá, pegando documentos com a diocese; 
com historiadores. A gente também foi ajudando a incrementar os 
documentos históricos para a defesa do Ceará”, disse a chefe do 
Celditec.
Os
 municípios cearenses envolvidos na disputa, que podem perder parte do 
seu território, são: Granja, Viçosa do Ceará, Tianguá, Ubajara, 
Ibiapina, São Benedito, Carnaubal, Guaraciaba do Norte, Croatá, 
Ipueiras, Poranga, Ipaporanga e Crateús.
No
 Piauí, alguns municípios podem ter seus territórios aumentados, sendo 
eles: Luís Correia, Cocal, Cocal dos Alves, São João da Fronteira, Pedro
 II, Buriti dos Montes, Piracuruca, São Miguel do Tapuio.
‘O Piauí sempre teve litoral’
“Antigamente,
 se dizia que o litígio havia surgido de uma ‘troca’ entre Piauí e 
Ceará, que dera o litoral do Piauí. Na verdade, o Ceará invadiu o 
litoral do Piauí e, em 1880, Dom Pedro II assina um decreto obrigando a 
devolução desse litoral”, explica o pesquisador Eric de Melo.
Ele
 completa: “Paralelo a isso, em decorrência das secas de 1840 e 1877, o 
Ceará recebia atenção especial do Império, que, aproveitando o decreto, 
decide passar para o Ceará terras do leste do Piauí, que compreendem as 
nascentes do rio Poti. Não foi uma troca”.
As
 principais fontes para a pesquisa dele foram documentos e mapas aos 
quais ele teve acesso na Torre do Tombo e no Arquivo Histórico 
Ultramarino (Lisboa, Portugal). Há ainda cartas donatárias do século 
XVI, mapas históricos do século XVIII, decretos do século XIX e um 
acordo firmado em 1920.
Os documentos citados mostram que o Piauí já tinha território definido desde 1760, com o Mapa de Galucio.
“Nesse
 mapa, é possível entender que o Ceará nunca teve posse do litoral 
piauiense. Daí ,temos como provar a primeira invasão, que originou o 
decreto de Dom Pedro II”, explica.
Possivelmente,
 o equívoco, segundo o pesquisador, se deu após publicação de Studart 
Filho, em 1938, em que dizia que o litoral do Piauí foi doado em troca 
do território de Crateús.
Melo
 diz ainda que é possível usar as imagens de satélite que servem de 
suporte para a aplicação das técnicas de divisa de território.
Os
 argumentos dele, no entanto, são contestados pela deputada cearense. “O
 estado do Ceará fez um resgate cultural de vários decretos legislativos
 — inclusive tem um de 1820 — e a interpretação real, completa, deles. O
 Piauí interpreta os documentos só até o ponto que o favorece. O Ceará 
interpreta completamente porque também vai nos favorecer, é lógico”.
Regras para divisão territorial
Criada
 em 1718, a Capitania do Piauí ficou sem governador até 1758, quando foi
 desmembrada do Maranhão. Em seguida, foi produzido seu primeiro mapa, 
que seguia os critérios do Tratado de Madrid, um deles o uti possidetis,
 ita possideatis: quem possui de fato, deve possuir de direito.
De
 acordo com Melo, outro ponto importante é a regra para divisão 
territorial, que quando acontece por uma parte do relevo da região, 
considera o chamado divortium aquarum, o divisor de águas.
Assim,
 como a região fica em uma Serra, o ponto mais alto é o divisor natural.
 De um lado, o território é piauiense. Do outro, cearense. É a partir 
disso que o pesquisador afirma que o estado vizinho avançou esse ponto. 
Há regiões de cidades cearenses bem a oeste da Serra, como mostra a 
imagem abaixo.
“O
 Piauí sempre reivindicou essas terras e sempre reclamou junto aos 
governo centrais sobre as invasões, mas o Ceará é uma potência e sempre 
conseguia abafar a questão. Tanto que hoje o IBGE passou pro Ceará, nos 
seus mapas, áreas que são do Piauí. Comprovando e descarando a invasão 
cearense”, afirma.
Disputa secular
Conforme
 a pesquisa do geógrafo, a disputa começou oficialmente quando o governo
 do Ceará criou a freguesia de Amarração (hoje Luís Correia) dentro do 
território do Piauí, em 1865.
Segundo
 ele, devido à falta de provas que comprovassem que aquela área era de 
fato do estado do Ceará, o estado foi obrigado a devolver as terras 
localizadas no litoral ao Piauí e passar a jurisdição da freguesia de 
Amarração, em 1880.
Naquele
 mesmo período, o estado do Ceará enfrentava secas severas e tinha um 
grande déficit hídrico. Além dos planaltos da Ibiapaba, pertenciam ao 
Piauí as nascentes do rio Poti, um dos principais rios da bacia 
hidrográfica do rio Parnaíba.
“Como
 medida paliativa para a seca cearense, o Imperador Dom Pedro II resolve
 ceder ao Ceará a área referente a essas nascentes, que compreendiam os 
municípios piauienses de Príncipe Imperial e Independência (hoje, 
Crateús)”, afirma a pesquisa.
E
 essas informações são relativamente fáceis de serem conferidas: as 
definições foram estabelecidas pelo Decreto Régio Nº 3.012 de 12 de 
outubro de 1880.
Desde então, muitas tentativas de negociação aconteceram até que a disputa fosse levada à Justiça.
Disputa judicial
O
 procurador do Estado Luiz Filipe Ribeiro, que integra a Procuradoria do
 Patrimônio Imobiliário e Meio Ambiente da PGE-PI, explicou que, em 
1920, durante a Conferência de Limites Interestaduais, foi assinado um 
acordo (Convênio Arbitral) entre os Estados do Piauí e do Ceará. Este 
acordo foi firmado com o Presidente Epitácio Pessoa e nele ficou 
estabelecido que engenheiros de confiança do governo da República fariam
 um levantamento topográfico do trecho da causa.
“Como
 esta demarcação nunca foi realizada, no início dos anos 2000, o Estado 
do Piauí buscou solução amigável para a demanda, sendo constituída 
comissão composta por Deputados Estaduais das partes que, por diversas 
vezes esteve reunida com vistas celebração de novo pacto objetivando 
solucionar a problemática. Restando infrutíferas as tentativas de 
acordo, o Governador do Estado do Piauí autorizou, por escrito, que se 
buscasse o Poder Judiciário para solucionar esse litígio”.
Diante
 de toda a situação, em 2011 o governo piauiense, na época sob comando 
do governador Wilson Martins, buscou a Suprema Corte para decidir a 
questão. Segundo a Constituição, este é o órgão o responsável por 
solucionar casos de litígio no país.
Após
 alegações dos dois estados, o STF determinou a realização de uma 
perícia na região, para definir de quem são as terras. No momento, o 
Exército Brasileiro realiza a perícia, que ainda não tem previsão de 
término.
Procurado
 pelo g1, o órgão informou que até o momento foram realizadas “pesquisas
 bibliográficas e históricas, a mobilização e o treinamento do pessoal 
para o trabalho, bem como as fases internas de planejamento”.
Informou
 também que foi concluído o Projeto Básico da licitação para o 
aerolevantamento a ser realizado na área de litígio. Segundo o Exército,
 as equipes aguardam a incorporação de recursos para as despesas. 
“Assim, ainda não é possível prever, com exatidão, a conclusão da 
perícia”, informou.
A
 deputada cearense Augusta Brito comentou sobre a perícia. “O Exército 
fez um levantamento prévio, sem ir a campo, pegando mapas e fazendo uma 
leitura fria e cartográfica. Por essa perícia, o Ceará estaria realmente
 perdendo vários municípios para o Piauí; não só a ação que o Piauí deu 
entrada, que era um pedido bem menor, mas com essa avaliação do 
Exército, poderia ser ainda maior a possibilidade”.
No
 mês de abril, foi juntado à Ação Cível Originária (ACO) 1831 do STF uma
 petição do Exército pedindo transferência de recursos para viabilizar a
 perícia e informando que o General de Brigada Marcis Gualberto Mendonça
 Júnior é o novo diretor do Serviço Geográfico e perito nomeado para 
acompanhar o processo.
Somente após a análise, o STF poderá decidir sobre o caso.
“Após
 a conclusão da perícia feita pelo exército, o STF deve oportunizar 
prazo para as partes se manifestarem. Em seguida, o processo deve ser 
incluído em pauta para julgamento pelo STF”, informou o procurador do 
Piauí, Luiz Filipe Ribeiro.
O que dizem os governos
As Procuradorias Gerais dos Estados (PGE) do Piauí e Ceará acompanham os trâmites judiciais.
A
 PGE-CE afirmou, em nota, que considera precipitado antecipar 
posicionamento sobre o caso, visto que não há decisão judicial alguma 
proferida e que a perícia realizada pelo Exército está prevista apenas 
para o segundo semestre deste ano.
“Mas
 entende os argumentos do Ceará como favoráveis a uma decisão que 
mantenha o território estadual sem mudanças, tais como investimentos 
realizados ao longo de décadas, sentimento de pertencimento e 
identificação cultural da população local com o Ceará. Além disso, 
orientou os municípios da região, por meio das Procuradorias Municipais,
 a elaborarem petição conjunta para figurarem como “Amicus Curiae” na 
ação”, destacou.
Já
 a PGE-PI disse que o estado “fundamenta a pretensão em sólidos 
argumentos jurídicos, históricos e geográficos. A questão é bastante 
antiga. A origem remonta à 1870, ano em que a Província do Ceará ‘criou’
 a freguesia de Amarração (atual Município de Luís Correia) dentro do 
território da Província do Piauí. Como pode um Estado criar um Município
 dentro do território de outro Estado?”, questionou.
E
 completa: “Não houve uma ‘troca’ de territórios para o Piauí ter acesso
 ao litoral. Desde a criação do Piauí este sempre teve acesso ao Oceano 
Atlântico, como todas as demais capitanias hereditárias. Houve uma 
espécie de ‘compensação’ para o Ceará ‘devolver’ Luís Correia, 
transferindo Crateús para o Ceará. O mesmo decreto imperial estabeleceu 
que a Serra da Ibiapaba seria a linha divisória entre os 2 estados, de 
modo que as vertentes ocidentais pertencem ao Piauí. Portanto, você não 
pode ainda estar subindo a serra e já se deparar com uma placa dizendo 
‘bem-vindo ao Ceará’. Isso não faz sentido”, argumentou o procurador 
Luiz Filipe.
Na
 quinta-feira (5), após reunião com deputados cearenses do comitê 
responsável por acompanhar o caso, a governadora do Ceará, Izolda Cela, 
informou que pretende pedir uma audiência com o STF para tratar do 
assunto.
Potencialidades e atrativos da região
A
 área dispõe de características bastante atrativas para os setores 
econômicos de forma geral, em especial agropecuários. Além disso, o 
potencial hídrico é um dos grandes destaques. Nessas áreas, são 
encontradas 4 sub-bacias hidrográficas, sendo a maioria dos seus rios 
afluentes da bacia hidrográfica do Parnaíba.
“Como
 prova disso, estão as criações do gado, caprinos, ovinos, suínos, 
galinhas, abelhas, equinos e diversas espécies de peixe, além das 
plantações e da atividade extrativista vegetal, que nos municípios que 
possuem seus territórios nas áreas de litígio, representam mais de 
1.000.000 de hectares, distribuídos por quase 60.000 estabelecimentos”, 
informa a pesquisa de Eric.
Contudo, ele avalia que um dos entraves para maior desenvolvimento da região é a indefinição acerca da jurisdição.
“O
 desenvolvimento social e econômico de quem vive em meio ao litígio 
entre os estados é precário, uma vez que empreendimentos públicos e 
privados, assim como infraestrutura e serviços básicos não chegam a 
esses lugares devido à indefinição sobre a qual território pertencem 
essa área”, diz.
Segundo
 a deputada, o Ceará pretende ouvir a população da região sobre o 
litígio. “Nós estamos fazendo algumas audiências públicas para coletar 
algumas assinaturas para abaixo-assinado mostrando o sentimento de 
pertencimento das pessoas que estão diretamente ligadas a esse litígio, 
que estão dentro dessa briga, e poderão perder alguma coisa ou não”, 
destaca.
Os
 investimentos públicos realizados pelo Executivo cearense nos 
municípios em questão são outro ponto que o Ceará argumenta sobre o 
território. “A gente também tem um levantamento que foi pedido a todas 
as cidades, aos prefeitos, de investimento, que pega número de escolas, 
poços profundos, postos de saúde… Tudo que foi feito pelo estado do 
Ceará, todos os equipamentos que foram concedidos aos municípios dessas 
áreas, para fortalecer essa defesa”, reforça a parlamentar.
O que pode acontecer?
Bom, mas afinal, o que pode acontecer dependendo dos resultados? Se o Ceará continuar com as terras, nada vai mudar.
Mas
 a avaliação do pesquisador Eric de Melo é de que é muito provável que o
 Piauí vença a disputa, já que muitos documentos provam que o território
 pertencia ao estado e que o alto da Serra da Ibiapaba deve ser o ponto 
considerado para a divisão.
Assim,
 a principal mudança é que muitos territórios cearenses se tornarão 
piauienses. Assim como 25 mil pessoas do estado vizinho “mudarão” de 
endereço.
É
 importante destacar que os municípios não serão integrados ao Piauí em 
sua totalidade, mas apenas parte de seus territórios, correspondente à 
área destacada em vermelho no mapa abaixo.
“O
 que pode ocorrer: áreas que hoje estão ocupadas pelo Ceará passarão 
oficialmente para a jurisdição do Piauí. Os núcleos urbanos que são 
registrados como do Ceará até 1880, mesmo estão sobre os planaltos da 
Ibiapaba, permanecerão como do Ceará. Agora o que foi instalado após 
1880 ficará com o Piauí”, destacou Eric.
O pesquisador destaca que o Piauí, com o retorno do território, pode ter diversos benefícios administrativos.
“Para
 o Piauí, o ponto positivo será a consolidação do seu território, o que 
para a gestão pública é a base administrativa. Também podem ser 
considerados pontos positivos o incremento populacional e de 
arrecadação, além das possibilidades de uso dos recursos naturais”, diz.
Quanto
 ao impacto para a população, o pesquisador diz que a mudança prática 
será apenas de endereço, já que é preciso muito mais que uma mudança de 
governo para caracterizar a identidade de uma população, seja ela 
cearense ou piauiense.
Será
 necessário um período de adaptação e transição para a mudança das 
gestões de alguns serviços, em especial de saúde e educação, por 
exemplo.
Fonte: G1
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
