Lara*
tem 11 meses e recebeu, nesta semana, as primeiras doses de vacinas que
deveria ter tomado aos 60 dias de vida. Para a irmã Clara*, a
imunização só veio com 1 ano e 6 meses. O motivo do atraso é dito pela
avó, não imunizada contra a Covid: o posto de saúde fica na área de uma
facção rival.
“Não
tem condição, a gente não pode ‘passar’ até o posto. Até pra gente se
pesar e renovar o Bolsa Família é difícil. Quando precisa, as agentes de
saúde vêm. Faz é anos, já”, diz Maria Silva*, 49, cujas 4 netas estavam
com a imunização atrasada.
Para resguardar as identidades, todos os nomes de personagens desta reportagem serão fictícios.
A
atualização do cartão de vacinação das meninas ocorreu durante busca
ativa da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). A ação de Monitoramento
Rápido de Cobertura (MRC) deve alcançar quase 6 mil crianças de 0 a 4
anos, em todas as regiões da cidade.
Na
comunidade do bairro Vila Velha, onde Maria* mora e onde o Diário do
Nordeste acompanhou o trabalho da equipe de saúde, a interferência dos
conflitos entre facções no acesso à saúde é escancarada, mas revelada
entre sussurros por moradores e pelos próprios agentes comunitários.
“Quando
precisa vir uma equipe, a agente comunitária de saúde vem e o chefe da
facção tem que autorizar a equipe entrar”, revelou uma das trabalhadoras
à reportagem.
Na
mesma comunidade de Maria*, vive a dona de casa Bete*, mãe do pequeno
Enzo*, de 4 anos – que recebeu, empolgado, as gotinhas do reforço
atrasado contra a poliomielite. Num contexto em que a doença ameaça
voltar ao Brasil, só a busca ativa alcançou o objetivo de imunizá-lo.
“Nós
não temos posto aqui, o que tem é lá ‘do outro lado’. Pra gente, fica
mais difícil, né?”, diz a mãe, com as reservas de quem “respeita” o
funcionamento do território onde vive.
‘OS AGENTES DE SAÚDE SÃO RESPEITADOS’
As
barreiras que a violência ergue entre as comunidades se espalham por
toda a cidade, como atesta Luís Cláudio Celestino de Souza, presidente
do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde e Endemias do Ceará
(Sinasce) e da Federação Nacional desta categoria (Fenasce).
O
representante afirma que os agentes são respeitados pelas facções e
“têm trânsito livre” para as visitas domiciliares, mas que a realidade
que encontram nas residências reflete os efeitos danosos dos conflitos
territoriais. A realidade se repete em diversos estados brasileiros,
segundo ele.
Os
agentes olham o cartão de vacina da criança, veem que tem doses
atrasadas e orientam a família a ir ao posto de saúde. Aí vem a
informação dos moradores: ‘não posso ir, porque meu filho não pode
passar’. Tem essa dificuldade.
LUÍS CLÁUDIO CELESTINO DE SOUZA
Presidente do Sinasce
Luís
cita as regiões de Messejana, Grande Bom Jardim, Praia do Futuro e
Barra do Ceará como algumas onde os obstáculos mais aparecem. “Em todo
bairro tem isso, acaba fechando toda a cidade”, lamenta, sempre
reforçando que os ACS “são respeitados e conseguem chegar às famílias”.
O
presidente do Sinasce afirma que a entidade sempre dialoga com a SMS
sobre o assunto, deixando a secretaria ciente das dificuldades
enfrentadas nos territórios – mas reconhece que “o problema da
insegurança na cidade é estrutural”.
"Tem
criança que chega ao posto com várias vacinas atrasadas, e acaba
recebendo 3 ou 4 de uma vez. É sofrido. E no dia seguinte ainda tem que
voltar pra completar. Isso acontece também pela falta de segurança",
observa Luís Cláudio.
Uma das possíveis soluções, como ele sugere, é a intensificação de ações itinerantes.
“Se
houver uma estrutura maior e melhor, podemos fazer campanhas em
associações comunitárias, em pontos de apoio na comunidade, e não
centralizar nos postos de saúde. Assim, a cobertura vacinal seria maior e
atenderia a esse público que tem medo de ir à unidade de saúde”, frisa.
SEGURANÇA PÚBLICA
A
reportagem questionou órgãos de segurança e Justiça sobre o cerceamento
do direito à mobilidade e à saúde nas comunidades periféricas de
Fortaleza.
A
reportagem questionou órgãos de segurança e Justiça sobre o cerceamento
do direito à mobilidade e à saúde nas comunidades periféricas de
Fortaleza.
“Nesse
contexto, a segurança também está sendo considerada, inclusive com
ações que buscam identificar os pontos mais críticos na capital e a
construção de estratégias para contornar o problema”, afirma o órgão.
O
MPCE reforçou, ainda, que a vacinação “é um direito das crianças e dos
adolescentes previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o
meio mais seguro e eficaz para prevenir inúmeras doenças”, e pontua que
“caso a população tenha dificuldade de acesso a qualquer vacina, deve
procurar o MP para denunciar”, pelos canais:
Caosaúde
Karine Leopércio
E-mail: caosaude@mpce.mp.br
Telefone e WhatsApp: (85) 98685-9580
137ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde Pública
Ana Cláudia Uchoa de Albuquerque Carneiro
Telefone: (85) 3452-3719/ 3252-8966
138ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde Pública
Lucy Antoneli Domingos Araújo Gabriel da Rocha
Telefone: (85) 3253-4111
‘NÃO TAVA COM DINHEIRO PRA IR’
A
violência, aliás, é só um elo de uma longa corrente de obstáculos para o
acesso à saúde. Na casa de Maria*, situada numa rua sem pavimentação e
onde só 3 dos mais de 10 moradores já tomaram alguma dose contra a
Covid, a vacina era uma das faltas, dentre outras tantas.
Em
plenas 10h da manhã, ninguém havia comido nada. Nem as crianças. Duas
delas dividiram uma banana levada por uma agente de saúde. As outras
comeriam do pão que a mesma agente deu dinheiro para comprar.
“A
gente pode aproveitar pra pedir doação?”, disse uma filha de Maria* ao
ver os jornalistas que acompanhavam o trabalho sanitário.
Ali
próximo, Bete*, mãe de Enzo*, explica que o menino e o irmão mais novo,
de 2 anos, só não tinham mais vacinas atrasadas ainda porque ela “dá um
jeito”. “Quando preciso, vou pra outro posto. Tenho que arrumar outro
endereço pra poder ser atendida.”
E
isso quando outro acesso não é negado antes: o transporte. “Esses dias
era pra ele (aponta ao filho mais novo) ter ido pro posto, não fui
porque a gente não tava com dinheiro da passagem”, diz, com a
naturalidade triste e preocupante de quem já se acostumou.
EFICÁCIA E DESAFIOS DA BUSCA ATIVA
As
justificativas das famílias para o atraso vacinal vão desde a
dificuldade de chegar ao posto de saúde até a ausência de um responsável
para levar a criança no horário em que a unidade funciona, como lista
Vanessa Soldatelli, coordenadora de imunização da SMS.
A
gestora explica que apesar de eficaz, o trabalho itinerante das equipes
de saúde em busca de atualizar a vacinação de crianças a domicílio não
consegue alcançar todas – e tem expansão limitada.
“As
equipes normalmente têm uma demanda muito grande no próprio posto de
saúde, porque atendem saúde da mulher, do adolescente, do idoso,
consultas, várias atividades. Então precisam atender às duas demandas:
do posto e dos domicílios”, pontua.
Vanessa
destaca, ainda, que as mesmas equipes – compostas por enfermeiros,
técnicos de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde – são
responsáveis por visitar idosos, pessoas acamadas e levar vacinação a
creches e escolas “durante o ano todo”.
As
rondas são feitas normalmente no mês que sucede campanhas de vacinação.
Neste mês de novembro, a prioridade das visitas domiciliares é aplicar
os imunizantes contra a Poliomielite (VIP/VOP) e Tríplice Viral
(sarampo, caxumba, rubéola e catapora).
Cada
posto de saúde verifica o cartão de 50 crianças, há um sorteio pra
escolher as casas. É feita uma entrevista pra saber se há vacina
atrasada e o motivo. Isso nos dá subsídios pra elaborar estratégias
específicas, e conseguimos aumentar a cobertura vacinal em 2 a 3 pontos
percentuais.
VANESSA SOLDATELLI
Coord. de Imunização da SMS
Enquanto
acompanhava o trabalho da SMS, a reportagem encontrou famílias em que
os próprios adultos têm doses de vacinas atrasadas, como as da Covid,
por exemplo. Fortalezenses acima de 18 anos já devem ter tomado quatro.
Vanessa
Soldatelli afirma que “normalmente, no monitoramento, são levadas
vacinas também pra adolescentes e adultos, mas a prioridade são as
crianças”.
“A
gente se preocupa muito com as crianças, elas crescem e a preocupação
vai diminuindo, parece que a tarefa já está cumprida. E não é assim.
Quem leva a criança para vacinar precisa estar com a situação vacinal em
dia. Todo mundo é transmissor. Vacinação não é uma atividade
individual, é coletiva”, alerta a gestora.
Fonte: Diário do Nordeste
Foto: Fabiane de Paula