Ao avistar um animal na estrada, o biólogo Bruno Guilhon decidiu descer do carro e afastar a espécie Amphisbaena alba da pista em Pereiro, no Vale do Jaguaribe. Ao registrar despretensiosamente o bicho conhecido como cobra-de-duas-cabeças, fez uma descoberta científica: “A gente conseguiu descrever a ‘voz’ do animal pela primeira vez na história”, resume.
Os detalhes foram registrados no artigo “Preenchendo a lacuna da fonação em répteis: Primeiro registro de emissão oral da lagartixa-verme, Amphisbaena alba”, publicado pela revista internacional Austral Ecology, em março deste ano.
A pesquisa foi produzida na Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com a Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa). Essa é a primeira documentação feita de forma satisfatória sobre a emissão de som por este tipo de animal. Até então, apenas um relato rudimentar havia sido feito na década de 1980.
Inclusive, apesar do nome, as cobras-de-duas-cabeças não são cobras, mas sim anfisbenas – um nome genérico de répteis escamados e que pertencem à classe amphibia. A espécie possui um corpo dotado de escamas e olhos bem pequenos.
A anfisbena cava os próprios túneis onde vivem, usando o crânio bastante duro, em movimentos de um lado para o outro. Esse animal se alimenta de pequenos insetos e caçam na superfície com menos frequência.
As cobras-de-duas-cabeças podem ter comportamento agressivo com uma mordida forte e dentes afiados. Apesar disso, o animal não é peçonhento, ou seja, não é venenoso.
Ao avistar o animal, o biólogo fez um vídeo e conseguiu comprovar a produção de som. O registro foi analisado por meio de um software para verificar o comportamento da emissão sonora.
“A gente conseguiu fazer alguns gráficos sonoros para ver a intensidade sonora e outras frequências. Analisamos esse som e vimos a frequência dominante, qual a intensidade, qual o tipo de som, quais os harmônicos que produz”, acrescenta.
O especialista, doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sistemática, Uso e Conservação da Biodiversidade (PPGSIS), explica que, em outros termos, foi feita uma descrição do som da “voz” do animal, como notas musicais.
“Na Ciência, até o presente momento, os grupos das tartarugas, jacarés, alguns lagartos, cobras – como a própria jiboia – tinham registros sonoros, sejam mais complexos ou sons brutos sem significado nenhum”, acrescenta.
As cobras-de-duas-cabeças falam?
A análise feita pelo grupo avalia o som observado e dispõe de algumas ideias sobre o uso. “Mas como foi o primeiro registro, nós não temos outros casos e o animal morreu de causas naturais, a gente não teve a possibilidade de replicar em outros contextos”, pondera Bruno.
Por enquanto, uma das teorias é que o som seja atrelado à defesa. "Para alguns animais, como as próprias lagartixas de parede em casa, ao se sentirem ameaçados e pressionados, eles conseguem emitir um som de estresse similar a um guincho agudo", exemplifica o pesquisador.
Outra especulação, é de que o som sirva para comunicação dentro dos túneis cavados pela espécie. “Por causa da frequência, pode ser um som útil para se propagar nesses túneis já que seria mais facilmente transmitido. Por ele não ser um animal muito visual, a comunicação que ele pode realizar com certeza não vai ser aceno ou abertura de boca.”
O estudo, como avalia, serve de pontapé para novas pesquisas sobre o comportamento dos animais e a divulgação leva informações desconhecidas que podem levar ao respeito e conservação da espécie. Daniel Passos, pesquisador e um dos autores do estudo, investiga a evolução da comunicação acústica em répteis e avalia a descoberta como fundamental para preencher uma lacuna de conhecimento.
"O registro desse tipo de emissão sonora em uma cobra-de-duas-cabeças é surpreendente, pois suscita múltiplas funcionalidades, para um grupo de animais cujo repertório comportamental é usualmente subestimado”, conclui.
(Diário do Nordeste)