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Comunidade serrana constrói estrada para fugir do isolamento

Os moradores arregaçam as mangas no fim de semana para mudar a realidade ( Fotos: Marcelino Júnior )
A maioria dos moradores da comunidade vive da produção de hortaliças e frutas, mas tem sentido dificuldade para escoar os produtos pela carência de via de ligação com a sede do Município
Itapipoca. O agricultor Gleydson Rodrigues, 36, desde muito jovem sobrevive do cultivo de hortaliças, milho, feijão, abóbora e outros legumes. No pequeno espaço de dois hectares, a cebolinha e o coentro não param de produzir. 

O trabalho de colheita começa na madrugada, pois tudo tem que estar fresquinho para ser comercializado no mesmo dia, na feira livre, no centro de Itapipoca, no Norte do Ceará. De segunda a sexta-feira, o agricultor conta com ajuda do sogro e do cunhado para fazer a colheita e o transporte das verduras, produzidas sem agrotóxicos. 

Gleydson repassa aos feirantes e aos supermercados, o molhe de cheiro-verde a R$ 0,70; mas antes de chegar à cidade, ele percorre um longo e tortuoso caminho que torna o trabalho dele e de outras famílias mais difícil.

Sem estradas
O agricultor mora em um vale, onde está instalada, desde a década de 20, a pequena comunidade de Segredo, na Serra de mesmo nome, no distrito de Assunção. No local, moram 27 famílias, numa média de 200 pessoas, que têm a agricultura como principal meio de vida. Além de hortaliças e legumes, do Segredo também sai boa parte das frutas comercializadas, na sede do município e em parte da região Norte. O problema, é que não há estradas para o transporte da produção. 

Tudo que sai daquele pedaço de Serra é levado no lombo de animais ou nas costas dos próprios produtores, que percorrem pouco mais de dois quilômetros, no meio da mata, até um trecho da CE-168, quando a mercadoria passa a ser transportada em caminhonetes até a cidade, por cerca de mais 30Km.

A falta de transporte adequado, além de aumentar o percurso até a cidade, muitas vezes põe em risco a qualidade dos produtos. "Há muitos anos que nossa comunidade espera por essa estrada, mas nunca tivemos resposta aos pedidos feitos à Prefeitura. 

Enquanto essa obra não se tornar realidade, nossa vida aqui na Serra vai continuar sendo esse sacrifício para manter parte o mercado de frutas, legumes e verduras aqui da região em funcionamento. O tempo que se perde na caminhada e o sol forte, às vezes, chegam a prejudicar alguns produtos, fazendo com que o preço caia, e isso é ruim para a gente que não tem outro meio de vida", ressalta.

Infraestrutura
A falta de acesso à comunidade, cercada por ladeiras muito íngremes, onde em muitos trechos, nem mesmo uma moto é capaz de circular, não é sentida apenas pelos agricultores, que também não são beneficiados por escola ou atendimento médico. Há seis meses, a dona de casa Maria Teixeira Magalhães, 41, sofreu um aborto espontâneo do quarto filho. 

A mulher teve um mal súbito e foi levada às pressas ao hospital, dentro de uma rede providenciada por vizinhos. Segundo a dona de casa, por conta da demora durante o trajeto até a CE-168 para conseguir um carro, por pouco ela também não perdeu a vida. "Foi uma noite de muito sofrimento, sentindo dores, enquanto meus vizinhos tentavam me salvar. 

Mesmo com o pré-natal, não pude manter a gravidez. Com não existe transporte, e nenhum atendimento médico chega até aqui, o jeito mesmo é subir e descer ladeira a pé. Eu perdi meu filho, e até hoje tomo remédio controlado por causa disso", lamenta.

Como a comunidade não possui escola, as crianças em idade escolar também caminham por cerca de 45Km, até o distrito de Santarém, para assistirem aula. Eles formam pequenos grupos, que seguem por caminhos estreitos, com várias paradas para descanso. 

Em alguns momentos isso é feito debaixo de sol intenso. Samuel Carneiro Soares, aluno do 9º Ano, reclama da falta que a estrada faz. "Se tivéssemos esse acesso, o carro pegaria os alunos na própria comunidade, como acontece em outras localidades, por aí. Estudo à tarde, e no retorno, saio da escola 17h e chego em casa quase 18h. É muito esforço para mim, que tenho 15 anos, imagina para estudantes menores", reflete.

Iniciativa popular
Cansados de esperar pelo Município, os moradores de Segredo, que só recebeu iluminação pública no ano passado, resolveram arregaçar as mangas e abrir uma estrada alternativa mata adentro, com as próprias mãos. Os trabalhos são realizados aos fins de semana, depois de reuniões e da divisão dos grupos e escolha dos trechos a serem construídos. Com marretas, picaretas e pás, os homens avançam lentamente, sem ajuda de equipamentos. 

O projeto da estrada foi elaborado pelo agricultor Itamar Teixeira, que mora em Itapipoca, mas tem parentes na Serra. Com ajuda de um amigo advogado, o homem apresentou a ideia à Secretaria de Infraestrutura, mas não obteve nenhuma resposta. Após anos de espera, recebeu apoio dos moradores para tocar o projeto adiante.

Após alguns dias de planejamento, no fim do mês passado o trabalho foi iniciado. "Essa situação é um absurdo para todo mundo. As famílias que têm parentes na cidade, quando podem, mandam as crianças para estudar lá. Quem não tem essa condição, fica por aqui nesse sofrimento. Se a pessoa adoecer, só desce com ajuda de uma rede. 

O povo aqui vive em situação de isolamento mesmo. Apesar de não contarmos com apoio da Prefeitura, o trabalho sobre a estrada vai avançando com muito esforço, com a retirada das pedras, que são muitas. Enquanto isso, com muita dificuldade, todo percurso continua sendo feito a pé, ou com ajuda de animais, até a CE-168, de acesso à Itapipoca", afirma Itamar, que finaliza, "o pior é ver essa gente que produz tanto se deslocar com esse sacrifício todo a fim de poder comercializar seus produtos".

Procurado pela equipe de reportagem, o secretário de Infraestrutura do Município não atendeu as ligações.

Enquete 
Como é viver sem estradas?
"É muito ruim. Eu moro aqui há 39 anos e nunca ninguém olhou para esse lugar. Sofro de diabetes e tive de ir para a cidade nos ombros do meu filho, semana passada, com fortes dores. A dificuldade da gente é grande"

Rosimeire Gomes
Dona de casa
"É a pior coisa que pode existir para nós agricultores. Não podemos comprar um veículo, porque não tem como ele chegar aqui. Todo trajeto é feito a pé, ou no lombo de animais. Estamos isolados do resto do mundo"

Antônio Fernando Carneiro
Agricultor


 
Fonte: Diário do Nordeste